George Câmara: “Foi o Zé"?
Recentemente, terminei a leitura do livro “A OUTRA HISTÓRIA DO MENSALÃO – As contradições de um julgamento político”,
da Geração Editorial, Rio de Janeiro, 2013, de autoria do jornalista
Paulo Moreira Leite. Ele reúne 37 textos publicados em seu blog no
período de 29/05/12 a 18/12/12 a respeito da Ação Penal 470, sob
julgamento no STF.
Capa do livro " A outra História do Mensalão" do jornalista Paulo Moreira Leite
Jornalista
dos mais respeitados e com vasta experiência, o autor foi diretor da
revista Época e redator-chefe da Veja. Com maestria e consciência
crítica, Paulo Moreira Leite aborda as principais contradições de um
processo que, segundo o colunista Janio de Freitas, no prefácio, “antes
de ser a Ação Penal 470, o chamado ‘mensalão’ já estava sob uma ação
penal. Executada na imprensa, na TV, nas revistas e no rádio. Uma ação
que mal começara e já chegava à condenação de determinados réus. O que
houve nos meios de comunicação foi o desprezo excessivo pela isenção”.
Em
entrevista publicada no jornal Folha de São Paulo em 11/11/12, o próprio
jurista alemão Claus Roxin, um dos criadores da “teoria do domínio do
fato”, reconhece um mau uso dessa teoria quando se condena alguém apenas
pela posição hierárquica, sem a prova de que tenha comandado o fato,
emitido uma ordem.
O “não é
possível que não soubesse”, ao invés de prova, foi na verdade um
artifício usado pelo relator no STF para atender à suposta opinião
pública, diga-se, opinião publicada. Mas também o mesmo jurista alemão,
na entrevista já mencionada, vai além. Perguntado pelas jornalistas
Cristina Grilo e Denise Menchen: “A opinião pública pede punições
severas no mensalão. A pressão da opinião pública pode influenciar o
juiz?” Responde: “O problema é que isso não corresponde ao direito. O
juiz não tem que ficar do lado da opinião pública”.
Ao
final da leitura lembrei-me de um texto do escritor pernambucano Nestor
de Holanda, no seu livro de crônicas “Gente Engraçada”, publicado pelas
Edições de Ouro, Rio de Janeiro, em 1962. O texto recebe o título de
“Foi o Zé!”. Li-o aos 11 anos de idade, no primeiro ano do Ginásio
Agrícola de Ceará-Mirim, em estudo dirigido de língua portuguesa, sob
orientação do nosso Professor Cirilo, em 1971. Transcrevo integralmente:
“Foi o Zé!
Zé
nasceu no Dia dos Mortos. Ainda no Todos os Santos, a mãe lhe sentiu as
primeiras dores, mas ele esperou pelo Finados, para vir ao mundo. A
família e os vizinhos queriam Maria; nasceu Zé. Pior ainda: ia ser Maria
José e foi José Maria. Um tio desavisado levou-lhe uma boneca que dizia
‘mamãe’. Zé guardou a boneca por muito tempo. Era um conservador.
Quem
começou a vida assim, devia ter sido muito pacato. Mas, não. Zé mostrou
quem era, logo no Finados em que completou o primeiro aniversário.
Puxou a toalha da mesa e atirou no chão todos os bolos confeccionados
pelas tias, para a comemoração. Quando a mãe entrou na sala e perguntou
quem fizera aquilo, o pai respondeu: - Foi o Zé!
Desde
então, a frase ‘Foi o Zé!’ ficou pronunciada, anos e anos seguidos.
Estendeu-se pela cidade e atravessou fronteiras. Quando morreu um
canário de briga, não foi o gato: foi o Zé! Começou matando passarinhos.
Aos oito anos, passou a matar pombos. Aos doze, já preferia galinhas.
No Finados de seus quinze anos, foi quem derrubou o peru, com uma
pedrada. Tudo o que aconteceu de mal, na pequena cidade, desde que o pai
pronunciou a frase pela primeira vez, foi o Zé.
Na
escola apelidaram o globo de ‘América’. Por mais que a professora
explicasse que aquela bola representava o mundo, os meninos chamavam a
bola de ‘América’. O globo estava sempre coberto com uma flanela
amarela, bordada com linhas vermelhas. No dia em que a flanela
desapareceu, a professora não notou. Mas, na aula, por acaso, fez, a um
Pedrinho, a clássica pergunta:
- Quem descobriu a América? E o Pedrinho, delator contumaz, respondeu, sem vacilar: - Foi o Zé!
De
outra feita, arranjou um pedaço de arame e resolveu, no recreio,
brincar de vacinação. Furou o braço de todos os meninos, como se os
estivesse vacinando, de verdade. E o resultado foi que a estória se
repetiu: quando, na aula, a professora perguntou quem havia inventado a
vacina, o mesmo Pedrinho fez nova delação: - Foi o Zé!
Casou
– isto é: casaram-no. No Dia de Todos os Santos, nasceu Maria José,
menina loura, meiga, acomodada. Mas, já então, o descobridor da América e
inventor da vacina estava preso, em outra comarca, cumprindo pena pelo
crime de homicídio premeditado. Porque aquele saudoso Pedrinho apareceu
baleado. O coronel, meio surdo, que o encontrou já moribundo, quis saber
como foi:
-
Atiraram de tocaia? O agonizante confirmou: - Pois é! Disse isso e
morreu. Com a língua enrolada, já nos estertores finais, seu ‘pois é’
saiu muito parecido com o ‘foi o Zé’. E a denúncia se fez...
Não
sei se esta rápida tragédia serve para mostrar aos pais que, às vezes,
eles são culpados de os filhos acabarem na cadeia. O criador de nosso
herói, por exemplo, foi o criador (também) da frase que o perseguiu. E
tanto mal causou que, neste momento, estou recebendo carta, na qual me
informam que um condenado se suicidou, no Dia de Finados: - Foi o Zé!”
O
episódio tratado na crônica deixa uma lição não apenas aos pais, mas
também ao povo em geral. No julgamento da Ação Penal 470, o Supremo
Tribunal Federal age como o coronel meio surdo que, diante do estado do
acusador agonizante, utiliza provas fracas para aplicar penas robustas.
Ao
julgar dessa forma, cedendo às pressões da mídia conservadora, troca o
papel de guardião do Estado Democrático de Direito pela diminuta postura
de submissão àquele que o jornalista Paulo Henrique Amorim chama de PIG
– Partido da Imprensa Golpista.
Não
é surpresa para uma Corte que envergonhou o Brasil na ditadura militar
de 1964-1985. Apêndice dos generais, como na cassação do mandato do
Deputado Federal Chico Pinto, em 1976, por discursar contra a visita do
ditador Augusto Pinochet ao Brasil. Ou mesmo como subordinado ao
Superior Tribunal Militar – STM. Qual foi a postura do STF em abril de
1964 no episódio (na farsa) da cassação do mandato do Presidente João
Goulart? Durante o Estado Novo, o Supremo autorizou que a militante
comunista Olga Benário, grávida, fosse enviada para a morte num campo de
concentração nazista.
Ao
parabenizar o jornalista autor da publicação pelo brilhante e corajoso
trabalho e recomendar a leitura, quero destacar as palavras do cineasta
Jorge Furtado a respeito do livro: “O bom jornalismo é o alimento da
democracia, o mau jornalismo o seu veneno. Os textos de Paulo Moreira
Leite sobre o julgamento sintetizam aquilo que o jornalismo tem de
melhor: fidelidade aos fatos, capacidade de organizar e relacionar
informações, coragem de raciocinar com a própria cabeça, enfrentando a
manada. E talento, que não faz mal a ninguém. O futuro agradece.”
*George Câmara, petroleiro, advogado e vereador em Natal pelo PCdoB
Publicado no Vermelho em 07/01/14
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