Baixos salários, desvalorização social e más condições de trabalho. De acordo com os resultados do estudo da Fundação Victor Civita, esse conjunto de fatores afasta a maioria dos alunos que em aglum momento chegou a pensar em se tornar professor
Sim, o professor é fundamental para a sociedade e exerce um trabalho importante, nobre, gratificante e de muita responsabilidade. Mas, não, obrigado, não queremos ir para a sala de aula. É isso que diz a maior parte dos jovens brasileiros hoje. O trabalho é mal remunerado e o docente é confrontado pelos alunos, esquecido pelo governo e desvalorizado pela sociedade. Na pesquisa da Fundação Victor Civita (FVC) e da Fundação Carlos Chagas (FCC), apenas 2% dos estudantes do terceiro ano apontaram a Pedagogia ou algum tipo de Licenciatura como primeira opção de carreira.
Esse resultado bate com o panorama dos maiores vestibulares do país. De acordo com o Censo da Educação Superior de 2009, Pedagogia, Licenciaturas e outros cursos ligados à formação de professores têm uma relação candidato/vaga bastante desfavorável (como mostra o gráfico abaixo). O maior vestibular do país, promovido pela Fundação Universitária para o Vestibular (Fuvest), oferece 109 opções de cursos. E a graduação em Pedagogia no campus de São Paulo está na 90ª posição - no de Ribeirão Preto, é ainda pior: 92ª. Licenciaturas e disciplinas da Educação Básica são ainda menos procuradas pelos jovens (confira o ranking abaixo).
O estudo da FVC/FCC revela outro dado interessante. Os pesquisadores perguntaram aos 1.501 alunos entrevistados na parte quantitativa da análise se em algum momento do processo de escolha profissional eles haviam cogitado trabalhar como professor - e 32% responderam que sim. Porém quase todos logo descartaram a ideia. A questão voltou a ser abordada nos grupos de discussão, gerando reações que iam da surpresa ao riso. Como explica Ivan*, que estuda numa escola particular em Campo Grande: "Já pensei em ser professor, só que desisti rápido. Não tenho essa vocação, essa habilidade". Nas palavras de Carlos*, aluno da rede pública de Fortaleza, "já imaginei me tornar professor de Inglês, mas foi só por um momento".
Prestou, passou
Na média das universidades brasileiras e no maior vestibular do país, a relação candidato/vaga dos cursos de Pedagogia e Licenciaturas é uma das mais baixas.
Fonte: Censo da Educação Superior 2009.
Fonte: Fuvest 2010.
* Ao longo deste especial, os nomes dos alunos ouvidos pela pesquisa foram trocados para preservar a confidencialidade do estudo. Os jovens que aparecem nos depoimentos em destaque são identificados normalmente, pois foram entrevistados pela equipe de NOVA ESCOLA.
Baixa remuneração não atrai jovens das classes mais altas
Investigar as razões para essa desistência em massa ajuda a compor o painel da baixa atratividade da carreira docente (o gráfico abaixo mostra os fatores que mais afastam os jovens). Analisando os aspectos negativos da profissão, 40% apontaram a baixa remuneração. Outros fatores são o desgaste da profissão e os salários ruins. Ainda mais no atual contexto de ampliação do mercado de trabalho, com novas graduaçõespipocando a cada ano nas universidades. "A alta expectativa em adquirir bens, motivada pela sociedade de consumo e pelo apelo das novas tecnologias, faz com que a questão salarial tenha grande peso na hora de escolher a carreira", afirma Patrícia Cristina Albieri de Almeida, pesquisadora da FCC e uma das coordenadoras do estudo. "Além disso, os estudantes levam em conta a possibilidade de a profissão dar condições mínimas para sustentar o padrão de vida conquistado pelos pais. No caso das classes mais abastadas, a docência não cumpre esse requisito."
Um segundo grupo de motivos para não considerar a docência como uma possível carreira tem a ver com a falta de identificação pessoal ou profissional, apontada por 32% dos que chegaram a pensar em ser professor. Nas palavras dos jovens, essa é uma profissão que exige "vocação", "dom", "amor" - ou seja, as questões técnicas do trabalho estão extremamente desvalorizadas. "Um professor tem que ter o dom, tem que ser uma pessoa iluminada para poder ensinar", opina Ana*, de uma escola particular de Curitiba. Sua colega Roberta* concorda: "O essencial é ter vocação e muita paciência para lidar com as pessoas".
Penso, logo desisto
Cerca de um terço dos entrevistados cogitou a ideia da docência, mas acabou se afastando pelos fatores negativos ligados à carreira.
** Entre os entrevistados que pensaram em ser professor. Fonte: Pesquisa Atratividade da Carreira Docente no Brasil (FVC/FCC) |
Vista como sacerdócio, carreira não exige retorno financeiro
"Ao enxergar a docência como um sacerdócio, os jovens de certa forma reforçam o sentimento de que o professor não tem sequer o direito de exigir uma compensação financeira por seu trabalho, devendo simplesmente amar o que faz", avalia Patrícia. Nos grupos de discussão realizados em escolas particulares, alguns estudantes chegaram a mencionar que poderiam atuar em sala de aula como um hobby ou uma ação humanitária paralelos à profissão "oficial". Para os especialistas, essa concepção equivocada é até justificável. "No dia a dia da sala de aula, o aluno vê as dificuldades do professor e, como o considera tão desvalorizado, só justifica essa opção por atuar na escola como um dom", argumenta Ângela Imaculada Loureiro de Freitas Dalben, professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
O cotidiano escolar é apontado diretamente como uma fonte de desistência num terceiro grupo de respostas, que inclui o desrespeito e o desinteresse dos alunos e as más condições de trabalho. Vários jovens afirmam que não se sentem atraídos pela docência pelo que presenciam nas próprias salas de aula. Jorge* é representante de turma numa escola particular em Campo Grande e diz: "Se quando tenho de falar com meus colegas por cinco minutos já é complicado, imagine o professor, que dá seis aulas de 50 minutos para quem não quer prestar atenção". Também não passam despercebidas a necessidade constante de estudo e as atribuições que extrapolam o horário letivo, como lembra Leila*, estudante de escola pública em Feira de Santana, a 119 quilômetros de Salvador: "Depois de trabalhar em vários turnos, muitos ainda têm de chegar em casa, elaborar aula e prova e tudo mais."
Comprovação prática para as suspeitas dos especialistas
Vistas em conjunto, as percepções sobre o trabalho do professor captadas pela pesquisa mostram uma profissão cada vez mais complexa - os jovens entendem e mencionam dificuldades recentes, como o aumento da violência e da agressividade -, porém mal recompensada e sem capacidade de atração. "O grande mérito do estudo é trazer evidências empíricas para o que já intuíamos", afirma Denise Vaillant, coordenadora do Programa de Desenvolvimento do Profissional Docente na América Latina e Caribe (Preal). "A triste realidade é que a docência se transformou em uma opção por descarte. Se um amigo ou filho nos diz 'quero ser professor', nós mesmos muitas vezes respondemos, com a mão no coração: 'Pense em outra coisa'."
O Brasil já experimenta as consequências do baixo interesse pela docência. Estatísticas de 2006 do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) indicam que os profissionais do ensino constituem o terceiro grupo ocupacional mais numeroso do Brasil: 8,4% dos trabalhadores - em números absolutos, cerca de 2,9 milhões de postos de trabalho. Perdem apenas para duas categorias reconhecidas como grandes absorvedoras de mão de obra: os escriturários (15,2%) e os trabalhadores do setor de serviços (14,9%). E ficam à frente dos trabalhadores da construção civil (cerca de 4% da força de trabalho).
Faltam 710 mil docentes com formação adequada à área
O problema é que não há candidatos suficientes para suprir, com qualidade, as vagas disponíveis. De acordo com uma estimativa do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa Educacionais Anísio Teixeira (Inep), ligado ao Ministério da Educação, só no Ensino Médio e nas séries finais do Ensino Fundamental o déficit de professores com formação adequada à área que lecionam chega a 710 mil. É o que os especialistas chamam de "escassez oculta", que se registra quando o ensino é exercido por pessoas não plenamente qualificadas a ensinar para determinado nível escolar ou disciplina. A situação mais crítica ocorre nas ciências exatas. Em áreas como a de Física, o porcentual de docentes graduados no campo de saber específico é de apenas 25,2%. Na de Química, o total é de 38,2%.
O panorama é ainda mais grave se considerarmos que 41% do corpo docente tem 41 anos ou mais - ou seja, está relativamente próximo da aposentadoria (como se vê no gráfico abaixo). Além disso, a julgar pelos resultados dos mais recentes Censos Escolares da Educação Básica, começam a se avolumar evidências de que o número de aposentadorias tende a superar o número de formandos nos próximos anos.
Vale repetir que esse quadro não tem nada a ver com falta de vagas nas universidades. "Entre 2001 e 2006, houve crescimento de 65% no número de cursos de licenciatura. As matrículas, porém, aumentaram apenas 39%", afirma Bernardete Gatti, pesquisadora da FCC e supervisora do estudo. Segundo o Censo da Educação Superior de 2009, há 55% de vagas ociosas nos cursos de Pedagogia e formação de professores - número acima da média das outras carreiras (leia o gráfico abaixo).
Vai faltar gente
Número de vagas ociosas nos cursos de Pedagogia e formação de professores é alto. Enquanto isso, corpo docente envelhece.
Fonte: Censo da Educação Superior 2009. Fotos Dercílio. Ilustraçao Victor Malta
Fonte: MEC/Inep/Deed, Sinopse Estatística do Professor (2007). Fotos Dercílio. Ilustraçao Victor Malta
Escassez tende a piorar com a expansão da Educação Básica
Finalmente, um último aspecto inquietante diz respeito ao impacto da falta de docentes no aprendizado dos alunos. Dados do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa) destacam a relação entre a escassez (e a má formação) dos professores e o desempenho dos estudantes nesse exame internacional. No Brasil, o problema tende a se intensificar com a expansão das matrículas projetadas com a universalização do Ensino Médio e da Educação Infantil nos próximos anos - agora que foi aprovada a lei que torna obrigatória a escolarização de crianças e jovens de 4 a 17 anos. A questão não se resume a atrair urgentemente mais e mais candidatos. Trata-se de criar mecanismos para atrair os mais bem preparados, como você vai ler na próxima reportagem desta edição especial.
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